Ritual
Beatriz Blasi
“Ritual” é um projecto de documentação de gestualidades entre o sagrado e o profano. Através do registo dos movimentos, objetos, corpos e presenças de um conjunto de práticas de devoção, encontramos não apenas as sobrevivências e relações entre diferentes comunidades religiosas, mas o desaguar do espiritual naquilo mesmo que há de ordinário.
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“Em todo caso, a Europa, dona dos ritos”
escreveu Aimé Césaire no seu Discurso sobre
o Colonialismo (1950). Mestre, se quisermos
levar à letra o original francês maîtresse,
não apenas por ter domínio para dizer sobre
o que pode ou não ser “rito”, mas também
por autoproclamar a autoridade sobre seu
exercício. O autor martinicano acusa assim o
poder colonial de determinar que ritos eram
aptos a compôr uma religião - praticamente
reduzidos à tríade monoteísta Judaismo,
Catolicismo e Islamismo - e quais entrariam na
categoria da crença, superstição, heresia - como
sucedeu com as religiões de matriz africana,
indígenas e expressões mais folclóricas das
“grandes” religiões. Enquanto autoridade, a
Europa concedia autorização: os permitidos,
legalizados e regulamentados, e os proibidos,
perseguidos e violentados. Como autoridade,
também, poderia manifestar-se sobre a sua
verdade, separando os legítimos dos enganosos,
os reais dos que iludem e manipulam.
Segundo essa tradição, a maioria dos ritos
desvirtuam o caminho da razão, fazendo da
crença um problema de mentalidade. Entre
os que enganam e os que são enganados,
há aqueles que sabem a “Verdade”. Na sua
denúncia, Césaire aponta uma intimidade
da crença com a civilização ocidental e seu
progresso, onde o problema de mentalidade se
torna um problema de evolução: eles acreditam
nisso por estarem menos avançados, por terem
menos conhecimento ou por serem ignorantes.
As religiosidades ocupariam o vazio da razão,
dando resposta, portanto, a questões sobre as
quais não fosse possível saber. Ao sublinhar
esses perigos, vincula-se a questão do rito com
a da verdade, e ao como essa verdade não pode
ser destituída de formas específicas de violência.
Uma interpretação mais estrita pode levar
a pensarmos somente nos rituais religiosos.
Césaire, contudo, vai além. Trata do rito e da
autorização naquilo que ele tem de mais sagrado
e de mais ordinário: os rituais de casamento
e parentesco, os rituais contratuais, os rituais
jurídicos, os rituais do dia a dia, os costumes e as
repetições sociais. Se “Europa é dona dos ritos”,
e assim o é por conta do violento processo de
colonização a que submeteu povos, sociedades
e culturas em diferentes regiões do mundo, o
é também por se ter apropriado dos gestos.
Dos gestos que são sagrados e dos gestos que
são profanos, do visíveis e dos invisíveis, dos
permitidos e dos proibidos. Mestre dos gestos,
enfim, não apenas para autorizar corpos, seres e
saberes, mas para os deixar morrer ou permitir
sobreviver.
II.
Nesta crítica política das ritualidades, somos
convidados, em “Ritual”, a perceber aquilo
que nele há de nomádico. Seus percursos, seus
trânsitos, suas derivas. Religiosidades por vezes
estrangeiras, migrantes que encontram aqui um
espaço para atualizar suas práticas num solo a
elas estranho. Na montagem das fotografias,
que também é um espaço de encontro entre
os sagrados, percebemos uma errância que
transborda o espaço meramente religioso e
infiltra-se no cotidiano. Ainda que seja possível
ver o ritual na sua dimensão de hábito, a noção de
disseminação e contaminação dos gestos parece
agitar algo próprio nestas imagens, criando
entre elas uma comunidade heterogênea.
Nas fotografias, o ordinário parece ser
tomado por uma sacralidade estranha, subtil,
confundida, contaminada de signos e gestos,
repetições e sobrevivências, invadido por rituais
porosos que desaguam para aquilo que está
fora dele. Não apenas para o sacro extrapolar os
seus domínios, mas também para capturá-los.
No ritual há algo de emboscada, de trazer para
dentro os que dele estão fora; de fazer crer os
descrentes, de afetar os racionais ou, ainda, de
convertê-los. Beatriz Blasi não ficou imune a tal
captura quando na sua visita à Igreja Evangélica
tentaram catequizá-la, ou quando no terreiro de
umbanda, durante a sessão de cura, deixou-se
afetar pela atmosfera da presença dos caboclos,
ciganos e pretos velhos (entidades da umbanda).
Nos rituais dinamizam-se imersões - e talvez
por isso se confundam com os hábitos - que
sujeitam os presentes à possibilidade de serem
tomados. Não deixam ninguém sair imune sem
carregar algo no corpo ou junto a ele.
Mesmo a imagem de pombos esvoaçando,
aparentemente descolada das dinâmicas de
corpos e gestos das restantes fotografias, é
reveladora, capturada de assalto após a visita
a um exorcista. Naquele agito de corpos e
asas, uma remissão. Os movimentos do Padre
tornavam-se vestígio, um gesto que, mesmo
transformado, sobrevivia nas aves. Aquele
exorcismo de alguma forma se prolongava,
como se o ritual tivesse ido ao encontro do
mundo. Na empatia das formas e dos seres, Blasi
fotografa um prolongamento de intensidades.
Afetada, fugazmente suspendendo a razão, foi
convocada ao registro, cristalizando a invocação
religiosa naquilo que dela resta.
É nesse nomadismo gestual, nas suas
sobrevivências e nos seus movimentos, do
sagrado ao profano, do divino ao mortal, que
o ritual não apenas mostra a sua capacidade de
deslocar e mover (para dentro ou para fora),
como a de ser ele mesmo encontro. Seja com
o Jesus dos evangélicos, com os caboclos da
umbanda ou com os demônios do catolicismo;
seja com divindades, espíritos ou gentes; o
ritual é esse acontecimento no qual se lida com
a alteridade. Não será casual, portanto, que
Blasi construa uma espécie de atlas e, por isso,
utilize a montagem como apresentação dessas
imagens. A montagem é não só um método em
que os movimentos se multiplicam, mas que
permite que as imagens se encontrem. Nela,
na medida em que as relações são inventadas,
refeitas ou desfeitas, a imagem pode sempre ser
outra.
Lior Zisman Zalis
Beatriz Blasi (Lisboa, 1994) é uma designer e artista visual atualmente a viver no Porto. Artista multidisciplinar, o seu trabalho é variado mas converge principalmente na criação de narrativas e séries com recurso à fotografia documental.
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