Buraco de Minhoca
colectiva



Buraco de Minhoca é uma proposta coletiva de João Marçal e Francisco Queirós para a Galeria do Sol, que reúne um conjunto de artistas da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa: Francisco Corrêa, Francisco Novais, João Fonseca, João Marçal, João Salvador, Henrique Porta-Nova, Mariana Rocha, Paulo Malafaya, Raquel Garcês, Rita Silva Carreira, Rita Bárrios Ferreira, Rosa Eck e Sara Chitas Gouveia.

Buraco de minhoca é o nome dado por John Wheeler à teoria que evoca a existência de uma série de ligações espácio-temporais entre regiões longínquas no universo.

Poderíamos dizer que a presente exposição é o lugar onde alguns objetos se recalibram, numa contínua contração e expansão. A impermanência é a sua condição natural, o olho é um buraco de minhoca.




Buraco da Minhoca

Slip: to convey secretly. To slide; to glide; to steal; to move along the surface of a thing without bounding, rolling, or stepping. To fall or sink into sleep. To go quickly and softly; to pass unexpectedly.

É redescoberto e restaurado em meados do século XIX um manuscrito alemão três centenas de anos seu anterior— O Livro dos Milagres (Das Wunderzeichenbuch). Com algum mistério envolto na sua autoria, este documento medieval retrata uma panóplia de referências religiosas, fenómenos atmosféricos, relatos folclóricos e visões apocalípticas que informam uma predisposição natural humana para o inexplicável e fantástico (ainda que especulativamente). Residindo na sua essência uma aura simultaneamente ingénua e destemida, o livro apresenta-se como um portal temporal para uma tradição pictórica onde as visões e as ficções se amalgamam e subsistem apesar da sua inexplicabilidade teórica. Potenciando a expansão de uma narrativa hirta em efabulação, medo, consciência e desejo, estão nele presentes imagens cujo teor temporal parece residir no limiar da anacronia.

Pressupondo a tendência referencial e lógica de candência que a exposição encerra, Buraco de Minhoca é um conceito que parece apontar precisamente para a possibilidade de correlação entre dois tempos e espaços distintos. Interligando-se sobre uma premissa de afinidades (estéticas, conceptuais, poéticas e formais), as obras presentes remontam a duas gerações compassadas pela natureza frenética da contemporaneidade (uma nascida na década de 80 do século passado, outra no limiar da passagem para o ano 2000), mas não sem um constante e evidente olhar para as dúvidas presentes no passado. Depreende-se (não somente pelas características do espaço, como pela organização da montagem) o desenrolar de uma mensagem subliminar que nunca é desvelada na sua totalidade, por sua vez aumentando a estranheza e qualidade interrogativa inerente à sinergia que os trabalhos encargam.

Surge, a propósito da alusão à A Comédia de Deus (1995), uma pintura de João Marçal (Coruche, 1980) que facilmente associamos ao grafismo clássico da marca de tabaco Português Suave, referenciando uma cena do filme em que a ideia de alcançar um propósito através de um ato repetitivo de resistência se revela, surpreendentemente, eficaz. Apesar de singela, esta é uma faísca que rapidamente reverbera pelas restantes obras sobre papel que pontuam a sala e que seguem, para além de uma lógica sequencial, uma disposição semelhante à de uma grelha digital (i.e. álbum de fotos de telemóvel; feed; etc.). Após uma aproximação cuidada, os trabalhos em série de Henrique Porta-Nova aparecem, não obstante, enquanto imagens muito mais fiéis a representações cósmicas, místicas e fenomenológicas do que necessariamente a representações contemporâneas, por sua vez através de um mesmo processo de repetição. A capacidade do artista em expandir as qualidades plásticas da obra através de um processo de alternância e desequilíbrio aplicado sobre as características pictóricas e formais internas ao conjunto apresenta, assim, o início de uma tendência de reincidência e transformação visível na restante exposição (não só no que respeita o desenho e a pintura, como o trabalho em vídeo).

No piso superior, existe uma espécie de contaminação pictórica pulverizadora de signos e expressões plásticas nas imagens que
subtilmente descem do teto. Estes trabalhos (de autoria de João Salvador, Mariana Rocha, Rita Bárrios Ferreira e Rita Silva Carreira) informam o conjunto de obras da exposição, uma vez mais, da sua profunda e mutifacetada abordagem artística. Aliada a um experimentalismo plástico no que respeita o trabalho sobre as variadas superfícies de inscrição, a seleção de obras parece questionar a própria orientação formal do conjunto—relacionando intimamente ambas abordagens abstratas e figurativas. É através de um exercício de feedback presente nas duas restantes pinturas de Marçal (que delimitam uma diagonal entre os dois momentos da exposição abordados) que é instigado um pressentimento quase pressagioso de um enigma por decifrar. As duas fechaduras (que remetem sucintamente para um símbolo de culto), desencadeiam a entrada no piso inferior onde, no meio da penumbra, uma seleção de vinte obras em vídeo formam, se não uma resposta, então o consentimento da entropia transversal ao total da exposição.

Sequenciando trabalhos de várias autorias (Francisco Correa, João Fonseca, Sara Chitas Gouveia, Raquel Garcês, Francisco Novais, Rosa Eck e Paulo Malafaya), o conjunto de vídeos agrega e recontextualiza a energia que percorre a exposição. Com abordagens profundamente díspares a nível formal e conceptual, os vídeos parecem unir-se numa única imagem em movimento, fundindo e associando momentos poéticos mais cinematográficos a instâncias de um experimentalismo plástico fulminante. De um certo modo, é como se a convivência com as salas adjacentes contaminasse os filmes com a sua potência pictórica informando-os, subitamente, das suas afinidades com a pintura e o desenho. Concomitantemente, é aglomerado um alfabeto de recursos e fetiches visuais que se influenciam entre si. Da performance ao non-sense, o buraco da minhoca parece rastejar por entre um loop de experiências a acabamentos artísticos cujas qualidades indeléveis o denotam de um questionamento místico da contemporaneidade—uma pesquisa circular e anacrónica.

Eva Mendes
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Buraco de Minhoca
Um projeto de João Marçal e Francisco Queirós

Imaginemos uma linha de comboio.
Só uma.
De sentido único, traçada com precisão cirúrgica.
Uma linha que não volta atrás.
E nela, corre um único comboio.
Ninguém o conduz.
Não abranda,
não espera,
nem hesita.
Avança a uma velocidade que não se mede —
uma velocidade insensível,
demasiado rápida para o olhar,
demasiado constante para o tempo,
sem som,
sem pausa,
sem desvio.
Numa linha que não se curva,
infinitamente.
Não tem início visível.
Não tem fim aparente.
É uma recta que se estende para lá do que se vê,
e para lá do que se conhece.
Ao longo do percurso, surgem paragens.
Estáticas.
Inertes.
Silenciosas.
Lugares onde o tempo parece suspenso,
marcadas por símbolos que ninguém compreende.
Ninguém entra no comboio.
Apenas desperta-se nele.
Acontece-se.
Sem bilhete,
sem perguntas,
sem memória,
sem explicação.
Apenas duas regras.
Gravadas em silêncio.
Primeira — todos podem permanecer até ao fim.
Mas ninguém sabe o que há no fim.
Ou se há um.
Ou se alguém já lá chegou.
Segunda — a qualquer momento, é possível sair,
numa qualquer paragem.

Para isso, basta tocar no botão.
O botão vermelho.
Quase invisível.
Mas sempre presente.
Tocar nesse botão é sair.
Definitivamente.
E a paragem torna-se tudo.
Sem regresso.
Ali se fica.
Ali se é.

Francisco Queirós



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